Amira Rose Medeiros
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A Perna Cabeluda levou
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Breves palavras de introdução:
A Perna Cabeluda é uma lenda urbana que surgiu em Recife nos anos 70 e assustou aquela geração.
Há quem diga que ela ainda ronda pelo Nordeste e outros recantos do Brasil e do mundo.
Existem várias versões da lenda. Nesta versão, trago uma  Perna Cabeluda diferente, distante da ficção de terror, mas apresentada como a esperança ou a desgraça para um tema social complexo.
Como ensina o mestre Raimundo Carrero, em sua oficina literária, o escritor deve usar sua arte para debater as questões sociais .

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A PERNA CABELUDA LEVOU

Amira Rose Medeiros

Era até bom se a Perna Cabeluda levasse – pensou Luzia, alisando o bucho grande e disforme, enquanto preparava o angu dos três que dormiam amontoados no colchão do canto da sala. A casa-quarto, de um vão só, parecia em sintonia com o sentimento de vazio que sugava sua pouca força. Mobília escassa, ausência de cores. Silêncio e escuridão. Não havia o colorido ou o barulho de uma casa com crianças.
A noite tinha sido árdua. Lucinha e Gilberto queimaram de febre. Apenas a do meio, Mariana, ainda estava livre da virose. Sabe-se lá por quanto tempo. O caçula parecia tão abatido, nem chorar chorava. Bora ver se come o angu do fubá que Ozanira trouxe. O filtro de barro que ganharam na igreja era a esperança da água limpa pra manter vivos aqueles seres mirrados.
Mas o que angustiava Luzia não era a febre nem o pouco angu que era a única sustância naquele dia. Ela sentia pelo futuro do pequeno ossudo que forçava seu ventre. Sim, ela sabia que era ossudo, sua barriga de pelanca deixava perceber a projeção irregular dos ossos. Que mãe desgraçada era! Nem um coxim adequado podia dar àquele bebê. E também não daria leite. Igual no último parto. Seu leite era fraco, não saía nada, só aquela água transparente. Lembrou da disenteria que o caçula Betinho teve quando lhe deu leite de vaca seis meses atrás e isso quase custou a vida do pequeno. O bichinho! Ia morrer anjinho. Salvou-se pela misericórdia divina. Mas e esse agora, meu Deus! Por que dera de embuchar novamente. Só pra isso Juvenal era homem. Trabalhar e botar comer em casa, cadê?
— Luzia, como estão os meninos?
— Entra, Leninha. Adormeceram quase agora, a febre baixou.
— Vim te avisar que Juvenal tá na bodega tomando uma branquinha. Pelo jeito tá querendo perder o bico que Tonho deixou pra ele fazer.
— Já perdi a fé, nem precisa me contar.
O silêncio se instalou entre as duas. Luzia sentou-se ao lado do colchão e com o dorso da mão mediu a temperatura na fronte e pescoço da prole, enquanto Leninha observava a afilhada com um misto de amor e pena.
— Você lembra do filho de Natinha, que a Perna Cabeluda levou? – perguntou Luzia.
— Claro que lembro, faz dois anos, foi quando sua Mariana nasceu. Ela encomendou ele pra uma benzedeira. Foi um chá de sumiço. Assim que nasceu, a Perna levou. Ela nem viu. Melhor né?
— E leva pra onde?
— E quem sabe? Desde que essa história da Perna Cabeluda chegou por essas bandas, vez por outra uma mãe volta sozinha pra casa. Com certeza deve ser um lugar melhor do que aqui. Dizem que a Perna só escolhe os melhores pra levar. Mas tu não tá pensando besteira não, né?
— Não, mas se ao menos minha mãe estivesse aqui.
— Pra quê? Ia ser mais uma boca a passar fome. Tua mãe tá descansando no céu. Ela era uma santa.
Luzia queria ter puxado à mãe, mas seu coração não era santo, sobretudo agora que vinham pensamentos tão repugnantes à sua mente.
— Já pensasse no nome?
— Melhor não, num tem pra quê. Ficar se apegando antes do tempo. Vai que nem vinga. Pra que dar nome?
Leninha quis rebater, mas deixou quieto. Era daquele jeito mesmo. Não era brincadeira, não. Meia volta tinha um que não vingava. Às vezes levavam rápido pra Capital, mas era difícil voltar. Por lá ficavam. As parteiras mais velhas diziam que era a Perna Cabeluda que levava. Que ela sentia quando a mãe enjeitava e dava sumiço na criança. Falavam que as crianças iam pra um lugar melhor, onde seriam bem cuidadas, com comida e saúde, e teriam estudo e um futuro. Mas nem sempre era a mãe que enjeitava.
Leninha se foi preocupada enquanto Luzia ficou a velar o sono dos filhos. Já ia ser o quarto menino ou menina, naquele tempo não dava pra saber o que vinha, a revelação era no dia do parto. Tinha sido assim com todos os três filhos que nasceram. No parto de Lucinha, Juvenal ainda ajudava o pai na agricultura. Era novo, dezessete anos. E ainda estava apaixonado. No de Mariana, Juvenal já bebia. Trabalhava na fábrica de alumínio, ganhava pouco, mas trazia um quilo de feijão e três quilos de macaxeira que davam pra comer durante a semana. Quando a bolsa estourou, se não fosse por cumade Alice, teria parido em casa. Depois teve o aborto. O médico disse, lá em Cruz da Esperança, que ele tinha problema cardíaco, não ia desenvolver mesmo. Quando foi a vez de Gilberto, o pai tava desempregado e vivia de beber cachaça no bar de seu Biu. Na hora do parto, Luzia quase desmaiou. Fazia dois dias que estava à base de água, farinha e angu. Quando veio a dor forte, a vista escureceu, tudo começou a girar cada vez mais rápido e um suor frio e preguento começou a tomar conta de seu corpo franzino. O vizinho Ananias foi quem a socorreu e levou ao hospital. Não eram boas as lembranças.
Talvez, nesse caso, não fosse tão feio pensar na Perna Cabeluda. A bendita vez por outra aparecia e resolvia do jeito que tinha de ser. Mas ninguém falava sobre o assunto. Quem sabe se o ossudo em seu ventre não teria alguma chance de uma vida melhor.
Faltava um mês para o parto, quando Luzia procurou a benzedeira, decidida em tentar um futuro melhor para aquela criança. Não falou nada pra Juvenal, nem pra Leninha, nem pra cumade Alice, nem pra Ozanira, nem pra ninguém da igreja.
— Vou ver o que posso fazer. Vou interceder por você, minha filha. Se tivesse vindo antes, tínhamos mais tempo pra agir. Quanto antes começar o preparo, melhor.
— Eu tava na dúvida.
— Fique não, vai ser bom pra todos. O pai da criança também é branco?
— É.
— Vai ser mais fácil, então.
Chegou o dia. A bolsa estourou. Juvenal estava entretido no bar e lá continuou. Leninha ficou cuidando dos filhos de Luzia, quando ela saiu porta afora com a benzedeira. O parto seria num lugar de confiança. Luzia preferia não ter ouvido o choro alto e agudo da criança que botara no mundo. No dia seguinte, ainda era cedo quando Luzia entrou na casa de mãos vazias. Juvenal a esperava e, com o rosto inchado e vermelho de beberrão, perguntou:
— Foi menino ou menina, Luzia?
— Não sei, Juvenal, a Perna Cabeluda levou.
Amira Rose Medeiros
Enviado por Amira Rose Medeiros em 03/09/2023
Alterado em 03/09/2023
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