Amira Rose Medeiros
Escritos Meus - Poesias, Contos, Crônicas e Composições Musicais
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A lenda das sete pernas cabeludas
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Breves palavras de introdução:
A Perna Cabeluda é uma lenda urbana que surgiu em Recife nos anos 70 e assustou aquela geração.
Há quem diga que ela ainda ronda pelo Nordeste e outros recantos do Brasil e do mundo.
Existem várias versões da lenda.
Aqui segue a minha, dedicada ao mestre escritor, vencedor do Prêmio Jabuti, Raimundo Carrero.

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— Zefinha, visse onde encontraram uma Perna Cabeluda dessa vez?
— Pois num soube, muié! No sítio de cumpade Zito!
— E ele andava metido com muié da vida?
— Só pode! Essa Perna Cabeluda não aparece do nada. E ninguém mais deu notícia dele.
— Parece que evaporou ... Mode tumbém, quem mandou ser safado?
Candinho ouvia a conversa da mãe, escondido no canto da cozinha, com as orelhas em pé e o coração acelerado. De novo, só se falava nessa Perna Cabeluda. Fazia anos que não se falava na maldita, mas nos últimos meses já era a quarta perna sem corpo que aparecia pelas redondezas do brejo paraibano. E sempre que aparecia uma perna, desaparecia um cidadão.
A cidade estava em polvorosa, suspenderam a feira, o mercadinho de seu Chico não abriu, o padre cancelou a missa e a igreja manteve apenas a porta lateral aberta para receber quem quisesse confessar. O medo se apoderava do lugar e ninguém ousava sair depois do pôr do sol. O frio já se instalara no meio do ano, mas pelo visto não haveria fogueiras, quadrilhas ou fogos nas festas juninas.
A última vez que apareceram pernas assim foi nos anos setenta pelas bandas do Recife. Pra ser exato foram sete pernas. Sete pernas encontradas em locais que não se relacionavam e sete homens que desapareceram sem deixar vestígios. Todas as pernas estavam limpas, sem sinais de sangue. Pareciam ter sido cortadas a laser no alto da virilha. Um corte transversal reto e preciso. Os cabelos eram densos, mas não eram homogêneos, pareciam tufos triangulares que formavam um mosaico em vários tons. A polícia investigou de tudo, nenhuma pista, e os homens nunca foram encontrados.
— Isso é coisa do capiroto, Zefinha. Como que um corpo some? Como é que sobra só uma perna? E nem do desaparecido é?
— Tenho é pena desses homis. Morro de medo. Num gosto nem de ouvir. Melhor a gente num se meter nessas histórias. Coisa com o demo, melhor manter distância.
— Eu que num tenho pena. Isso é castigo, Zefinha.
E era tanta história que se inventava dessa Perna Cabeluda, até no colégio não se falava de outra coisa. Candinho já tinha medo de ir sozinho ao banheiro, tinha medo de ser o último a sair da sala e tinha até medo de olhar para Bele. Vai que a Perna pegava menino que olhava as meninas. Melhor não arriscar.
Candinho cresceu, casou com Marisa, deixou o brejo e foi morar na capital. Montou um comércio, um mercadinho bem sortido no bairro da periferia onde morava e nunca mais pensou na Perna Cabeluda. Era homem danado, esqueceu a timidez de menino e não podia ver um rabo de saia. Daqueles que até esconde a aliança no bolso da calça. Marisa aguentava as gaias do marido porque dependia dele e no íntimo ainda amava o salafrário.
Já haviam se passado quase cinquenta anos do dia em que escutara sua mãe, a finada Zefinha, tricotando sobre as sete pernas, quando ouviu no noticiário que três homens tinham desaparecido no Estado nas últimas semanas e próximo às suas casas encontraram Pernas Cabeludas. O alerta era geral. A polícia mais uma vez não conseguia explicar os fatos. Parecia que a antiga lenda estava virando realidade novamente. Se tudo acontecesse como nos anos setenta, mais quatro homens iriam desaparecer.
Candinho sentiu um arrepio na espinha igual a quando era menino. Se tinha uma coisa de que tinha medo, era de assombração, história de terror e dessa maldita Perna Cabeluda. No dia seguinte, no mercadinho só era no que se falava. O movimento diminuiu, muita gente com medo de sair de casa e a ordem era fechar mais cedo.
Lá pelo meio-dia, Dona Suzana, uma branquela boazuda da cintura fina e quadris largos, chegou ao mercadinho. Candinho gostava de arrastar uma asa pra aquela dona, mas ela era resistente. Chegou requebrando com uma saia curta e rodada que atiçava a fantasia de Candinho. Ficava a imaginar como ela seria debaixo daquele pedaço de pano e o quanto se esbaldaria naqueles seios fartos que se projetavam pelo decote profundo. Dona Suzana perguntou faceira e provocante:
— Ouviu falar da Perna Cabeluda, Seu Candinho? Parece que ela pega homem safado. O senhor se cuide.
— Isso é invenção dessa polícia que não trabalha direito. Não tá vendo, história de Perna Cabeluda, quem já viu...
— O senhor não tem medo, não?
— Claro que não. Isso é coisa de homem fraco. No mínimo é conversa de mulher pro marido ficar em casa. Caio nessa não.
— Gostei de ver, Seu Candinho. O senhor tá tão corajoso que me deu até um tesão.
As palavras da branquela atiçaram fogo no sangue de Candinho, mas ela apenas sorriu com malícia e saiu rebolando.
Candinho passou o resto do dia agoniado pensando na mulher. Primeira vez em meses que ela lhe deu corda. Ah que ainda pego essa mulher de jeito! Fechou o mercado e antes de ir para casa, foi ver Dona Lara. Vai que Marisa estava com enxaqueca, melhor garantir logo com Lara. Aquela sim, era fogosa, não negava serviço. Marisa assistia ao noticiário quando ele voltou e foi logo avisando que mais uma perna havia sido encontrada. Mesmo esquema das anteriores. Vários tufos triangulares de cabelos espalhados pela perna. Que história sinistra.
Passados mais dois dias, outra perna foi encontrada, agora já eram cinco homens desaparecidos. E todos com a mesma história em comum daqueles cabras raparigueiros dos bons. Alguns, as esposas nem sabiam, achavam que eram santos. Mas quando sumiram, foram tantas histórias vindo à tona, tanta mulher contando as aventuras com os ditos cujos, que ficou difícil não associar os desaparecimentos à lenda da Perna Cabeluda.
Dali a três dias, Dona Suzana volta de novo ao mercadinho.
— Vim pegar ovos, Seu Candinho. Não tem nenhum lá em casa.
— Resolvo já, Dona Suzana. Quer quantos? Vou lhe dar mais dois de brinde. E pra não ter risco de quebrar, pode deixar que eu mesmo faço o delivery.
— Deixe de enxerimento, Seu Candinho, que eu mesma posso levar. Não fica bem, o senhor é casado. E com a Perna Cabeluda solta...
— Oxe, Dona Suzana, não já lhe disse que não tenho medo de Perna Cabeluda. Perna cabeluda é a minha que sou macho dos bons. Veja aqui minha perna, veja.
— Pra sua idade, suas pernas até dão pro gasto... – disse, mais uma vez se insinuando, antes de sair no requebrado, deixando Seu Candinho babando.
Uma semana depois, outra perna foi encontrada e mais um sem-vergonha desapareceu do mapa. As pessoas estavam tensas, o medo já aterrorizava a maior parte dos homens, as filas aumentavam nos confessionários das igrejas, só se falava quem seria a próxima vítima da Perna Cabeluda. Um vidente famoso disse que seriam catorze homens dessa vez, outro garantiu que os astros apontavam para vinte e um. Teve gente que tentou predizer o local marcando no mapa a localização das pernas já encontradas.
No mercado de Candinho fizeram um bolão. O ganhador da aposta tinha que acertar a idade da vítima, a cidade em que ia desaparecer e quantos dias faltavam para acontecer o crime. Candinho até esqueceu o medo que tinha da Perna Cabeluda quando era menino. Mas por garantia continuava fechando o supermercado cedo, dava uma volta rápida para fazer um delivery para alguma conhecida. Depois ia para casa. Sempre chegava na hora do noticiário ou, no mais tardar, na hora da novela.
Já eram quase duas semanas sem aparecer nenhuma Perna Cabeluda, os burburinhos tinham diminuído e as pessoas já estavam se aventurando a ficar até mais tarde na rua. Depois de tanto alarde, parece que dessa vez só seriam seis homens desaparecidos. A polícia ainda orientava ficar esperto e evitar se expor em ambientes esquisitos após anoitecer.
Certa tarde, Dona Suzana apareceu no mercadinho ainda mais ousada. Vestia uma roupa de academia, com um short de lycra expondo as coxas musculosas e um cropped transparente que deixava à mostra os seios turbinados. Candinho mal conseguia se conter, querendo cair de boca na branquela.
— O que Dona Suzana precisa hoje?
— Não sei, Seu Candinho. Tô tão deprê. O senhor não quer me fazer um café?
— Oxe, Dona Suzana, fique deprê não. Uma moça tão bonita. Vou pegar um cafezinho agora pra senhora.
— Faça o seguinte, Seu Candinho. Eu preferia que o senhor fizesse o delivery de um pacote de meio quilo de café. Tô precisando de um café forte e quente lá em casa. Mas ainda vou malhar, se puder levar no final da tarde.
Candinho ainda boquiaberto, quase não soube o que dizer. Animou-se todinho pra ir ele mesmo fazer a entrega. Depois de um convite daquele, se não fosse dessa vez estava ruim. No meio da tarde começou a se preparar, tomou um banho, dividiu as tarefas com os empregados, disse que ia sair mais cedo para uma consulta médica e orientou fecharem o mercado no mesmo horário de sempre.
Escondeu o pacote de café numa sacola e aproveitou para colocar uns doces e um bolinho de cortesia. Saiu todo animado rumo à casa de Dona Suzana. É hoje. Deus tarda, mas não falha. E não é que a branquela o esperava mesmo. Abriu a porta enrolada numa toalha, com uma sandália alta e uma maquiagem caprichada. Candinho ficou tão desconcertado com a visagem que quase voltou para o mercado.
— Desculpe se cheguei num momento impróprio, Dona Suzana.
— Chegou em boa hora, Seu Candinho. Já botei a água do café pra ferver. Entre, venha fazer um café comigo.
Seu Candinho entrou. Foram pra cozinha, fizeram um café forte, quente e gostoso. Trocaram bolos, se lambuzaram com doce e esqueceram o mundo lá fora. Já iam na terceira xícara de café, agora na sala, quando o alarme do relógio de Candinho avisou que era nove da noite, hora do remédio da pressão.
— Eita, que nem vi o tempo passar, Dona Suzana. Pense num café bom, esse seu!
— Tava gostoso mesmo, Seu Candinho. Essa marca que o senhor trouxe tá aprovada. Só vou querer dela agora.
— Pode deixar, se quiser trago todo dia. Mas agora tenho que ir tomar o leite frio de casa.
— Não quer esperar amanhecer? Tá tarde, não é bom andar por aí essa hora.
— Oxe, já não lhe disse que não tenho medo dessa Perna Cabeluda, que isso é invenção?
— Eita que homi corajoso, forte igual o café.
Candinho estava tão inebriado pelos momentos com Suzana, que até esqueceu que café forte demais, quando passa do ponto, pode ser amargo. Despediu-se prometendo trazer mais no dia seguinte e saiu. Foi só fechar a porta que algo muito estranho aconteceu. Não era tão tarde da noite, mas de repente um vento gelado soprou ao lado de Candinho, trazendo uma neblina discreta que não deixava ver o fim da rua. Que moléstia é isso, agora deu pra neblinar por aqui? E esse frio, será que vai chover? Melhor apressar o passo.
A noite estava de um negro fúnebre e o vento gelado continuava a balançar as folhas das árvores gerando um assobio que amedrontava até os mais corajosos. A rua estava deserta como nunca vira. Povo besta, tudo em casa, com medo dessa Perna Cabeluda, ô bobagem! Tentava Candinho se convencer, enquanto apressava o passo, mas as pernas estavam pesadas, não conseguia andar mais rápido. Devia estar cansado, o café despendera muita energia. O uivo de uma coruja chamou atenção na árvore do outro lado da calçada. Que bicho tenebroso. Uns olhos profundos, de agouro.
Com esforço, Candinho chegou à esquina e conseguiu dobrar a esquerda. Agora estava na avenida mais larga, mas não se via um pé de pessoa, nenhum farol de carro, tudo esquisito. O nevoeiro ainda estava mais denso. Nunca existiu isso por aqui. Só vi isso em filme. Que coisa estranha.
Um gato preto saltou de um telhado bem ao lado de Candinho, emitindo um miado tão assustador que ele tropeçou na calçada e caiu de joelhos no chão, ralando a calça e a perna no asfalto. Sai daqui, peste negra! Vai assustar o cão. Odeio esses felinos. Ainda rasguei a calça. Que dor infeliz.  O gato sumiu no nevoeiro no final da rua tão rápido como surgiu.
Candinho levantou-se segurando na parede, passou a mão na calça tentando se reaprumar e retomou a caminhada. Percebeu um vulto cruzando a rua atrás de si. Virou o corpo rapidamente, mas não viu nada. Um sopro gelado em seu cangote provocou um arrepio que percorreu-lhe toda a espinha, até que sentiu uma pisadela no pé. Coisa sinistra. Não havia nada em volta.
Os tempos estão mudando mesmo, deve ser o aquecimento global. Muito calor de dia e esse frio repentino à noite. Deu alguns passos e um chute certeiro em seu tornozelo direito o fez gritar de dor pulando numa perna só. Pooooorra é essa! Quem tá aí? Antes que pudesse firmar o pé, um outro golpe deu uma rasteira na perna oposta e ele caiu de bunda. Aaaaiiiiiiiiiiii... que bexiga é isso?
A névoa fechou ainda mais sua visão e ele percebeu que estava sendo atacado. Saiam daqui seus delinquentes! Não tenho dinheiro pra vocês, seus miseráveis. Candinho tentava reagir com os braços, mas não conseguia ver seus agressores. Sentia um peso em torno de si que o imobilizava e um novo chute acertou-lhe o abdome com tanta força, que quis vomitar todo o café com bolo. Na sequência várias pisadas faziam doer pernas e braços, e passaram a alvejar sua cabeça.
Ouviu-se um pio de coruja agudo e ameaçador que arrepiou todos os pelos de Candinho e o ataque cessou. Atordoado, ele conseguiu abrir os olhos e, embora a névoa continuasse fechada, percebeu que os malfeitores haviam se afastado. Não levaram a carteira, não pediram dinheiro. Devia ter sido algum bando de drogados. Nem sequer levaram nada, só ruindade.
Ele estava acuado na solidão sombria daquela rua esquisita. Não conseguia se levantar para pedir ajuda e não aparecia um pé de pessoa. A avenida não era assim, nunca fora assim, realmente estranho. Será que estava todo mundo com medo de sair por causa da Perna Cabeluda? Não podia ser! Ou podia?
Um terror tomou conta dele. O coração disparou a mil por hora e a respiração ficou ofegante, o ar não entrava. Tentou sentar, mas não tinha forças. Doía o corpo e um pavor o imobilizou. Lembrou da finada Zefinha e orou para que a mãe o acudisse. Tarde demais. O nevoeiro se desfez o suficiente para ele ver no outro lado da rua uma enorme Perna Cabeluda que se aproximava em alta velocidade. Maaaaaaaaaaãeeeeeeeeeeeeeeeee. Um brado estridente rasgou a noite e o silêncio novamente se instalou.
Candinho evaporou feito fumaça sem deixar vestígios. Ninguém nunca descobriu seu paradeiro. Dia seguinte maior burburinho nos noticiários de João Pessoa: completa-se a maldição, Perna Cabeluda foi encontrada nos arredores do Rio Sanhauá.


Amira Rose Medeiros
Enviado por Amira Rose Medeiros em 03/09/2023
Alterado em 03/09/2023
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