Amira Rose Medeiros
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Memórias de uma Perna Cabeluda
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Breves palavras de introdução:
A Perna Cabeluda é uma lenda urbana que surgiu em Recife nos anos 70 e assustou aquela geração.
Há quem diga que ela ainda ronda pelo Nordeste e outros recantos do Brasil e do mundo.
Existem várias versões da lenda.
Aqui segue a minha versão anatômica da Perna Cabeluda, que dedico ao mestre escritor e vencedor do Prêmio Jabuti, Raimundo Carrero.

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Memórias de uma Perna Cabeluda

Algumas pessoas têm medo de mim, outras têm muita curiosidade, mas a maioria apenas me usa. Eu nasci precisamente no dia em que me deceparam do resto do meu corpo com um corte reto na altura da virilha de meu antigo dono. Não havia serra elétrica – Universidade pobre – então o processo foi lento, mas não menos preciso. Fui seccionada com cuidado pelas mãos experientes de um senhor de meia idade, média estatura, cabelos grisalhos, que me olhava com ar seguro.
Precisava reduzir o peso do corpo, era trabalhoso deixar inteiro, dificultava o processo e eu precisava ser separada. Assim, tornei-me livre para ser eu mesma, sem ser um peso para ninguém e sem precisar carregar uma vida inteira sobre meu pé.
Já andei muito pela vida a fora, essa é a verdade. Minha vida não foi fácil junto àquele corpo. Desde pequena trilhava quilômetros para ir à escola, tanto que meu dono desistiu e me botou para ficar apenas no roçado. Precisava ajudar a família. Lembro quando meus pés começaram a ficar com a sola dura, as unhas estavam sempre sujas. Meu dono não ligava muito, não me protegia, corria no barro, no asfalto, entre as pedras, subia descalço nas árvores. Eu gostava de ir com ele, mas às vezes ele exigia demais de mim. Por duas vezes fui picada, uma vez por escorpião e outra por um piolho de cobra. Fiquei roxa, inchada, ouvi dizer que quase que morria eu ou eu e ele.
No roçado meu dono usava botas, mas era um pobre coitado, botas sem qualidade... Uma vez pisou numa tábua com um prego que a atravessou. Senti um molhado na bota e tudo ficou encarnado. Tenho a marca pontiaguda até hoje. Mas não durou muito. Meu dono não gostava de serviço pesado, queria coisa fácil, desistiu da roça e foi pra cidade.
Logo se meteu no que era fácil e proibido. Foi minha época mais confortável, gostava daqueles tênis com amortecedor, ou de simplesmente ver a estrada passar sob o pedal da moto do meu dono. Eu luxava. Mas também não demorou muito. Logo tive que voltar a correr e, depois de algumas corridas, aqueles tênis já não eram mais os mesmos. Corri muito pra salvar meu dono, mas não teve jeito, fiquei cinco anos circulando no mesmo ladrilho de três metros. Deu saudade do barro, do asfalto, da roça e até dos pregos.
Saímos de lá e foi bom pisar na areia da praia de Tambaú. Meu dono prometeu que quando saísse, seria o primeiro lugar a visitar. Promessa era dívida. Ele tinha palavra. Foi bom sentir aquela areia molhada. Mas ele tinha palavra. Prometeu também que no mesmo dia que saísse ia acertar as contas daquela parada com a facção.
Não deu outra. Naquela mesma noite dormi numa câmara fria e fedida. Não sei quantos dias fiquei lá porque o gelo começou a me envolver. Até que um dia nos tiraram de lá. Fomos passear de carro. Vi quando nos colocaram novamente numa mesa de inox, mas dessa vez foi diferente. Passaram um tubo no pescoço do meu dono e comecei a sentir um líquido me percorrendo inteira. Parecia ganhar sangue novo. O líquido ia seguindo por minhas artérias e infiltrando cada pedacinho de mim, até à ponta dos dedos. Ganhei alma e vontade de viver. Era como se quisesse recomeçar. Esquecer o que passou e ter um novo sentido para existir. Meu dono ainda estava triste, mas começou a entender seu propósito. A alegria voltou ao seu semblante, agora pacífico.
Ouvi quando o senhor que injetava aquele líquido, o mesmo que meses depois me livrou de meu dono, reclamou para outro colega:
— Não tem navalha, nem máquina pra passar, tudo quebrado, vai ficar assim, com essa perna cabeluda.
No dia que nasci foi assim que ele falou:
— Vamos serrar o da Perna Cabeluda, pois já veio sem a outra perna, aí fica simétrico e facilita o trabalho.
Dias depois veio um rapazinho com cara de esperto, começou a tirar minha pele, eu não ia mais ser a Perna Cabeluda. Separou minuciosamente os músculos, as veias, as artérias, os nervos. Eu não sentia mais dor, nem cócegas. Sentia apenas uma alegria danada, um orgulho de ser aquela perna, agora pelada, nas mãos daquele quase menino que ia ser doutor.
Amira Rose Medeiros
Enviado por Amira Rose Medeiros em 03/09/2023
Alterado em 03/09/2023
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