Amira Rose Medeiros
Escritos Meus - Poesias, Contos, Crônicas e Composições Musicais
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O DOADOR DO CORPO

Para muitas pessoas poderia ser apenas mais uma manhã, como qualquer outra. Mas Aderval acordara eufórico e ansioso, e, sobretudo, muito feliz. Desde que descobrira aquela possibilidade real, já havia feito várias ligações para saber os procedimentos necessários, até a chegada daquele dia tão aguardado. Não podia perder tempo, apesar de não ter nenhuma comorbidade mais grave. Iria deixar tudo certo, assinado e resolvido. Para que não houvesse dúvidas sobre a sua vontade. Queria garantir que seu desejo fosse atendido.

Era homem de fé, mas não religioso. Acreditava na Ciência e na Medicina. Provavelmente, no auge de seus setenta e sete anos, já teria se beneficiado muito dos resultados das pesquisas e do conhecimento acumulado em saúde ao longo dos anos. Não era homem doente, tinha o juízo muito aprumado, e o físico ainda aguentava resolver as demandas próprias da idade. De fato, era um premiado. Andava sozinho para onde queria, dirigia seu carrinho e ainda era o patriarca da família.

A esposa o acompanhava naquele dia, estava de testemunha, embora não se expressasse muito. A empolgação de Aderval era tão grande que não havia muito espaço para ninguém mais falar. Chegou cedo ao setor de anatomia, antes do horário agendado. Não havia sido fácil chegar até ali, as pessoas não sabiam informar adequadamente, não sabiam do que se tratava, confundiam com Instituto de Medicina Legal, o famoso e temido IML. Era até difícil perguntar e se fazer compreender. “Moço, você sabe onde fica o local para doar o corpo para estudo?” Silêncio absoluto. Ninguém sabia. “Como assim? Doar o corpo? Não é doar sangue? Ou ser doador para transplante? Não! É doação do corpo mesmo! Quando morrer, sabe? Não. Não sabia.” Não era uma ideia nada familiar... Mas, enfim, estava mais perto do que longe.

O grande bloco das ciências morfológicas apareceu diante dele, gigante, com suas paredes em tijolinhos vermelhos e seus cinquenta anos de construção. Era um bloco extenso, com um corredor comprido, e até bem conservado pelo tempo, por se tratar de uma instituição pública. A área arborizada próxima à reserva florestal trazia silêncio e uma brisa gostosa ao ambiente, apesar do calor escaldante do mês de fevereiro. A calmaria do local era apenas interrompida pelo entra e sai de gente, professores, alunos, circulando rapidamente de um lado para o outro. Turmas e mais turmas de doze cursos diferentes, que por lá estudavam. Não sabiam quem era aquele senhorzinho sentado ali. Não sabiam qual era sua intenção. Talvez se soubessem, pudessem cumprimentá-lo e agradecê-lo em vida.

Aderval estava orgulhoso, certo de sua decisão. Havia sido tão difícil convencer a família. Se é que convencera! Não tinha como não depender deles. Mas era seu sonho. Há muito tempo tinha esse desejo, que agora pulsava diante dele, convocando-o! Claramente, chegara o momento de encarar seu desafio. Deixar a libélula sair do casulo e voar.

Entrou no hall da secretaria, passos ainda tímidos, mas firmes, em busca da certeza de ter chegado ao final de sua rota. Verificou que havia uma senhora atrás de um balcão isolado por um enorme vidro e a chamou. “Moça, é aqui que faz a doação do corpo? Eu liguei hoje dizendo que vinha.” A senhora, lisonjeada com os anos rejuvenescidos, respondeu amavelmente. “É aqui mesmo. É o senhor Aderval?” Aquelas palavras fizeram o coração do senhorzinho agitar-se de alegria. Foi reconhecido e estava sendo esperado! Estava em casa. Que emoção! A secretária convidou o casal para aguardar dentro da sala da professora responsável pelo cadastro. Ficaram confortáveis no ar-condicionado, conversando sobre a importância do gesto. Suas mãos de pele clara enrugada, marcadas por manchinhas marrons, estavam agitadas, segurando com cuidado a pasta de documentos. O maior tesouro naquele momento. Seus olhos brilhavam e observavam atentamente o ambiente, procurando o apoio nos olhos de sua companheira, que continuava quieta. Tirou os óculos de armação grossa e resistente e os entregou para ela. Sem falar nada, num gesto de cumplicidade resignada, ela o limpou na barra da longa saia de algodão estampado, levantou-o contra a luz e o devolveu para ele. Permaneceram a esperar.

Não muito distante dali, em uma sala ao final da ala anatômica, a professora estava com seus alunos em aula prática. Partes de corpos seccionados eram estudadas minuciosamente pelos futuros médicos. Cada detalhe, veia, artéria, nervo, músculo, órgão, ligamento. Era necessário identificar, entender, correlacionar cada relação entre aquelas estruturas maravilhosamente criadas. Quem idealizou tanta perfeição? Fé e ciência caminhavam de mãos dadas. Uma reforçava a outra. Estudar anatomia era encontrar o esmero de Deus em cada minúcia. Quão nobre era estar lá e conhecer esses pormenores. E quão nobre deveriam ser aquelas partes de corpos, que se deixavam compreender, que permitiam a formação daqueles futuros profissionais.

Mas a maioria daqueles corpos não estava lá por opção, como a de Aderval. Ao longo de todos os quase cinquenta anos de existência da faculdade, talvez no máximo quatro ou cinco pessoas tiveram o mesmo altruísmo daquele senhorzinho que aguardava na secretaria. Quase todos vinham da doação compulsória dos corpos não reclamados do IML. Mas o mundo evolui, as coisas mudam, o que antes seria uma heresia, um pedido de excomunhão, agora era visto como a forma ética de se estudar, de respeitar o ser humano e sua vontade antes e depois da morte. A ideia era divulgar e fazer a sociedade entender que não se constroem bons profissionais de saúde sem qualidade de ensino. E não há ensino anatômico sem corpos reais. Parece duro. Mas é a realidade nua e crua.

A professora acabara a aula. Tentou vir o mais rápido possível. Não queria fazer Aderval esperar. Não apenas por educação ou respeito a sua idade, mas para que ele não pensasse em desistir. Cumprimentou-o com cordialidade. Já ouvira falar dele, pois há meses ele vinha ligando para perguntar uma coisa ou outra à secretária, mas era a primeira vez que o via e falava com ele. Também estava emocionada. Seria sua segunda entrevista a um doador. A anterior havia sido com um senhor bem mais introspectivo, que falava pouco, e já chegou, do nada, com a documentação pronta. Aderval era diferente, perguntava, divulgava, contava aos amigos, levava panfletos, cartazes, contagiava a todos com sua vontade de contribuir com a medicina, com sua certeza na sentença proferida a si mesmo, como juiz de seu próprio destino.

A professora conferiu os documentos. Assinatura do doador reconhecida no termo de doação, assinatura das testemunhas, cópia das identidades. “Tudo certo”. “Vamos fazer algumas perguntas para o cadastro, endereço, telefones, e perguntas pessoais optativas, escolaridade, profissão, renda, religião, doenças prévias.” Aderval respondia a tudo com entusiasmo. Chegaram à parte subjetiva. “Por que quer ser um doador?” E não havia como não se emocionar com a resposta. “Porque sempre foi meu sonho, doutora! Queria tanto dar os parabéns a vocês por estarem fazendo isso! Não há nada mais importante! Pra que serve um corpo embaixo da terra? Se eu posso ajudar a formar tantos médicos, enfermeiros, tanta gente que vai salvar vidas; por que não fazer?” E se empolgava ainda mais: “Acho a coisa mais linda, uma pessoa estudar pra ajudar outras pessoas. Eu não pude estudar, mas se eu puder contribuir! Isso devia ser lei, todo mundo devia ser obrigado!”. A professora se divertia com seu jeito de falar. Se era tão difícil falar na mídia ou com não doadores, encontrar um doador, sobretudo como Aderval, lhe trazia alma nova para manter-se firme com o projeto. Dava-lhe toda a convicção necessária para saber que esse era o caminho, que não havia nada feio, escuso ou pecaminoso em tratar desse tema. Doa quem quer! Quem não quer continuará usufruindo dos profissionais formados!

E assim foi tentando explicar todos os procedimentos. Não é fácil falar da morte de alguém que ainda não pensa em morrer, quando ele está diante de si. Mas tinha que explicar. “Quando o senhor morrer, a família vai entrar em contato conosco para combinar a entrega do corpo. Mas podem fazer o velório normalmente.” Aderval perguntava incomodado: “Tem algum jeito de dar errado? Alguém pode impedir que meu corpo venha pra cá? Sim. Não temos como obrigar a família. Como saberemos que o senhor morreu, se não for por eles? Se eles não avisarem, não teremos como ir atrás, e o senhor já estará morto.” Foi aí que caiu a ficha para Aderval. “É mesmo! Eu já vou estar morto.” Quando se morre não se tem mais o poder sobre o próprio corpo. Agora era da família, até o quarto grau de parentesco, em linha reta ou colateral. A professora perguntou se a esposa era favorável. “É o que ele quer, né? Temos que respeitar.” Mas suas palavras não convenciam ninguém, nem a si própria. A filha era a mais resistente. Não queria seu pai como cobaia para os alunos dos primeiros anos de saúde. “Que aprendam em outros corpos. No meu pai, não!”

Mesmo assim, ele estava confiante de que daria certo. “Não devo morrer logo, não, doutora! Acho que ainda duro uns dez anos. Minha saúde é boa!”. “Que bom, senhor Aderval! Esperamos não lhe receber tão cedo por aqui. Esse é seu cartão de doador, com o número de seu cadastro e todos os nossos contatos: telefone, e-mail, site, Instagram. Qualquer dúvida nos procure.” Os olhos dele brilharam. “Vou ter um cartão de doador?” E começou a lacrimejar. A professora também! Nem em seus alunos mais talentosos era comum ver tanto amor à ciência. Se eles pudessem estar ali. Talvez só o encontrem um dia formolizado, numa bancada do laboratório. Mas ela estava, e testemunharia sempre aquela cena.

Havia ainda uma pergunta da professora. “O senhor gostaria de algum cuidado específico com seu corpo?” Ele pensou, pensou. “Não. Podem fazer o que quiserem, podem cortar o que quiserem. Já não vou sentir nada, mesmo. Só quero que respeitem meu corpo e não façam brincadeiras!” Essa era sempre uma preocupação! “Fique tranquilo, Aderval. Estamos trabalhando forte nesse sentido. E em breve teremos um memorial em gratidão aos doadores!”

Aderval despediu-se de todos. Talvez só voltasse lá como matéria fria e inerte. Voltou para casa feliz. Já teria onde repousar seu corpo quando ocorresse o passamento. E melhor ainda: com a sensação de missão cumprida em favor da ciência. Daria seu corpo ao flagelo pela salvação de outros. Sensação de já ter visto isso na história. Missão cumprida em vida; missão a ser cumprida após a morte. Agora era só esperar morrer, para renascer nas mãos e nas mentes daqueles profissionais de saúde. Cuidando, diagnosticando, tratando, curando, consolando, reabilitando corpos humanos. Direta ou indiretamente estaria lá, realizando seu sonho de menino, até retornar definitivamente ao pó.

 

 

Amira Rose Medeiros
Enviado por Amira Rose Medeiros em 03/09/2023
Alterado em 03/09/2023
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