Amira Rose Medeiros
Escritos Meus - Poesias, Contos, Crônicas e Composições Musicais
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Poças e poços

Hoje tá chovendo e me lembrei das poças... As poças de lama que se formavam pela rua de barro onde morava. Poças grandes e pequenas, rasas e fundas. Ora alegres, ora tristes, estáticas ou em movimento.

Ficávamos parados olhando os carros passarem lá na rua, formando ondas que vinham em arcos até próximo de nossos pés. Paravam quase sempre no mesmo lugar, mas a impressão é que iriam mais longe. Vai molhar seus pés! Vai não, Dea! Eram nossos pequenos tsunamis.

Aguardávamos ansiosas a passagem dos caminhões ou de uns carros mais afoitos que colocavam trinta ou quarenta por hora, levantando um leque de água suja sobre os muros das casas.

Catávamos pedras e cacos de tijolos – as casas estavam sempre em construção – para arremessar nas poças grandes e escutar aquele glowc glowc, parecido com o glut glut daqueles grandes goles de água gelada descendo rápido pela garganta. As poças eram a água que engolia.

Minha casa ficava numa esquina entre duas ruas. Tem duas frentes, dizia meu pai orgulhoso. Nunca descobri a vantagem. Um vizinho a menos, uma área vulnerável a mais. Na verdade, eram três frentes, uma era a oficina de meu pai que se abria para a avenida principal e as outras duas davam para as ruas colaterais menores. Ela formava quase metade de um quarteirão. Eu tinha um orgulho por isso, era uma casa feia e inacabada, mas era enorme.

Sombrinhas e guarda-chuvas eram objetos indispensáveis. Todo mundo tinha. A gente andava muito a pé. Usava quando chovia e quando fazia sol. Havia de várias estampas, mas a maioria era floral, romantizadas. Acho que tentavam imitar aquelas sombrinhas decoradas das princesas de antigamente que víamos nos filmes. Não gostava dos guarda-chuvas pretos, pareciam de homem. Mas o fato é que nem um nem outro era bom de carregar, era apenas necessário. Mais um volume mal encaixado na bolsa já pesada. Cuidado pra não perder! Perco não, mainha. Nunca perdi. Era artigo caro, não podia perder. Não era como hoje que é apenas mais um bem descartável em qualquer importadão chinês. Naquele tempo se quebrasse não ia para o lixo, levava ao conserto.

Lembro-me de quando ganhei minha primeira sombrinha dobrável. Fazia duas viras e ficava do tamanho de um palmo. Tão melhor de colocar na bolsa! A de minha mãe veio de Brasília, foi minha tia que trouxe de presente. Presta atenção quando for abrir! Abra contra o vento, senão quebra. Nunca quebrei. Menina comportada e obediente.

Às vezes chovia por dias e a encruzilhada da minha esquina virava um lago. Só conseguia sair pelo portão da frente, que era o endereço real da minha casa. Será que as poças sabiam e respeitavam a entrada oficial? Deixavam uma entrada livre. Assim, arrodeávamos pelo outro lado até dar a volta completa em todo quarteirão para ir ao colégio. A grande volta nos livrava dessa poça mar, mas não de outras que encontraríamos no caminho. Não tinha jeito. Muitas vezes passava a aula inteira com os pés frios, as meias encharcadas, a barra da calça jeans com um azul mais escuro até a canela, denunciando por quantas poças passei.

Certa vez, com as águas já mais baixas, descobri um jeito de evitar as poças. Passei a seguir pelo cantinho do muro de um colégio supletivo que ficava na frente de casa. O muro tinha uma parte gradeada em cima e uma sapata larga embaixo. Eu chegava o mais perto possível da grade e pulava feito uma rã para me agarrar a ela. Era arriscado, se caísse seria em cheio na água funda ao pé do muro repleto de mato. Invenção de criança. Eu apoiava os pés na sapata acima do nível da lama e ia progredindo até a esquina, com pés de Chaplin e passos de caranguejo. Manobra útil para alguns dias, mas nem sempre era aplicável.

O dia de poça mais emocionante foi da vez que choveu muito, muito, muito mesmo. A encruzilhada virou um imenso lago barrento que se estendia nas quatro pontas até muito longe. Tentáculos de polvo que se projetavam mais além e iam se infiltrando nos espaços com suas ventosas. A água não foi tão inocente, ocupou toda a minha rua da frente e fez estrago, invadindo a casa da minha melhor amiga em ondas que atravessavam do portão até o quintal. Tem que construir um batente na frente, falava a mãe dela com uma calma conformada.

Minha casa ficou uma ilha. Dessa vez a poça não respeitou o portal do meu templo. Foi um dos dias mais importantes da minha vida... Não porque pude brincar de náufraga numa ilha deserta. Não porque quase que a TV vinha nos filmar. Não porque fomos alvo da curiosidade dos vizinhos. Foi um dia memorável porque aquela poça suja e enorme de lama me trouxe para perto de meu pai. Ele gostava de coisas estrambólicas. Acho que herdei dele minhas ideias mirabolantes. Que bom que não havia celular, nem selfies, nem redes sociais. Não perdi a essência do momento, e ele continua em mim há mais de trinta anos.

Teu pai tá construindo um barco. Não, não era um barco. Uma jangada? Não, não era uma jangada. O que era então? Não sei... mas flutuava. Flutuava. Flutuava nas águas profundas daquele imenso mar de lama.

Não me lembro se eram uma ou duas boias de pneu de caminhão. Mas eram enormes. Ele amarrou algumas tábuas em cima e um outro pedaço de madeira era o remo. Vocês não vão ter coragem de andar nisso, vão? Vão se sujar, pegar doença nessa água podre!

Bora, nega! Entre os cuidados de minha mãe e o desafio de meu pai, acabei o seguindo. A embarcação estava ancorada na parte mais rasa do rio, na entrada da minha casa. Sentei naquela coisa junto com meu pai e lá fomos nós. Balançava. A água ia invadindo o nosso espaço, enquanto invadíamos o espaço das águas. As boias eram boas, deram conta de nos fazer velejar por mares nunca dantes navegados. Mas as tábuas não estavam tão firmes. Meu pai era assim. Tinha boas ideias, começava tudo com vontade, mas não tinha o mesmo afinco para as finalizações. O acabamento sempre deixava a desejar. Mas naquele momento que diferença isso fazia? As tábuas retas e frouxas permitiam a entrada das ondas frias no balanço das águas, molhando o assento. Tive susto e receio apenas por uns breves segundos. Quem tá na água é pra se molhar. Aproveitei e sorri.

Quando chegamos lá no meio do rio, daquela imensidão de água, parecia mágico. Senti-me Gulliver desbravando as águas e cruzando meus medos. Ou cruzando as águas e desbravando meus medos. Fizemos a volta completa naquele oceano de possibilidades infinitas, até chegarmos à outra margem, no ancoradouro da parte mais funda que chegava ao portão de trás da minha casa. Agora era a vez de minha irmã fazer sua viagem. Sob o olhar curioso dos vizinhos, a vi entrar na água e corri para um banho. Vem, menina, tirar essa sujeira!

Meu pai não soube o quanto aquela aventura foi importante, uma brincadeira inspiradora para minha vida. Um dos raros momentos com ele. A confiança literal para entrar naquela onda e romper minha timidez para o mundo. Danem-se os vizinhos. Vou me dar esse direito de velejar rumo ao nada, ou talvez, rumo ao tudo. Aquelas ondas continuam vivas. Balançando. Balançando.

Porém, o maior legado das poças veio depois. Minha mãe dizia: presta atenção nas poças, vá desviando. Mas não era somente desviar. Precisava criar uma estratégia para caminhar entre elas até chegar do outro lado. Não olhe só em volta de seus pés. Olhe mais adiante. Às vezes tem um caminho mais fácil aqui, você vai ligeirinha e lá na frente zás! Tem uma poça intransponível. Verdade. Minha mãe estava certa. Chegava lá na frente e não tinha passagem. Se for por ali tá melhor! Vem! Passei. Por aqui não molha os pés. É só dar um pulo aqui no final. Voltava para o início, pegava nova rota. O caminho das pedras. Esse tinha um pulo grande no início, mas depois era mais limpo e seguro, as poças eram menores. Tinha que olhar o todo pra chegar do outro lado da rua. Ver as pequenas ilhas de apoio. Perceber, mesmo à distância, onde o chão parecia mais firme e onde era lama escorregadia, esperando pelo deslize fatal.

Se não quisesse recomeçar e recalcular a rota, podia se arriscar no finalzinho, bem perto do outro lado. Dar o maior pulo que as pernas finas e compridas de saracuras pudessem alcançar. E apelar para atingir o outro lado.

Projetava o corpo pra frente, tentando pegar um impulso impossível naquele pequeno monte de terra. Tem que ser de uma vez, sem vacilar. Toda energia concentrada num único salto. Num único objetivo: chegar à outra margem. As pernas se esticavam ao máximo, os músculos se contraíam para jogar o corpo mais adiante. Esforço físico e mental. Cheguei ao outro lado. Não escorreguei, não caí na lama. Um pé pisou na terra firme, daria frutos. O outro pé molhou-se na beirinha da poça. Alguns respingos na barra da calça e o solado do sapato que permaneceria sujo no decorrer do dia, carregando as cicatrizes do plano – mal – executado. Quando voltasse pra casa tomava banho, lavava a calça, limpava os sapatos. No dia seguinte tentaria trilhar um caminho mais seguro. Quem sabe não fazia sol? As poças me ensinaram muito.

Ando com um guarda-chuva sempre em meu carro. Deixo ele lá. Uso pouco, muito pouco. Não sei quando a chuva vem, mas se vier ele está lá. Antes não levava e sempre que precisava, cadê? Então, quer saber? Agora está sempre comigo, no cantinho do carro, não me dá trabalho. É como um amuleto, está sempre lá. Quando eu era menina preferia arriscar. Vou levar não! Não tá com cara que vai chover. Tá só nublado. Se chover eu corro. E assim seguia meu rumo.

Dia de chuva. Estaciono o carro no trabalho, pego meu guarda-chuva. Agora é um grande, não é mais a sombrinha dobrável floral. Esse é grande, listrado, hastes firmes. Não ligo se é feio, me protege bem. Prefiro a segurança que ele me dá, não preciso mais colocar na bolsa. Usarei por poucos metros até a entrada do prédio. Vou desviando das poças, às vezes olhando para baixo, fazendo um zigue-zague entre os paralelepípedos, tentando encontrar as pedras firmes do caminho. Escuto a voz de minha mãe. Olha pra frente, menina! Presta atenção por onde tá indo! Aí não passa! Tem que dar a volta por ali. E assim, eu vou. Caminhando e cantando. Até chegar. E chego. 

 

Amira Rose Medeiros
Enviado por Amira Rose Medeiros em 17/05/2022
Alterado em 17/05/2022
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