Amira Rose Medeiros
Escritos Meus - Poesias, Contos, Crônicas e Composições Musicais
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Era uma vez, na quarentena
A internet tá fraca. Desliguem os celulares. Tô só no notebook. Aqui tá pegando bem. Vou começar a prova. Vou começar a dar aula. Dora, tira o gato daqui. Fica miando, os alunos escutam. Karoca, não entre no quarto. Vou começar a aula. Mãe, não tá pegando o áudio aqui. Como assim, Teteu? Não tava pegando ontem?  Acho que é o meet. Natinha, olha aí o computador de teu irmão! Já vou começar a aula, não tenho como olhar. Também não posso, tô em aula. Cadê Duda? Manda ela. Não sei. Vejam aí. Duuudaaaaaaaaa.
A prova vai ser adiada, professora? O governo antecipou os feriados do ano inteiro. Pois é! Vamos refazer o cronograma. E agora? É o jeito. Tem o que fazer não. Não pode ter aula presencial. O povo tá morrendo. Mas o reitor disse que não ia mexer nas datas. Espera pra ver, o MP já se posicionou. Se não parar tem multa de vinte e cinco mil para a UF. Vamos aguardar.
Trim. Trim. Trim. Mal acaba a aula, é só ligar o celular, já tem ligação. Oi, Naldo. Oi, por que não atendesse? Tava na aula. Tráz água de côco. Esquece não. Vem almoçar? Não sei. Separa aí o almoço. Tô pensando em ir direto para Bayeux, tem muito atendimento. E Karoca, volta hoje pra casa? Vou ver com minha mãe. Se der eu levo.
Hora do almoço. Vem pra mesa, gente! A aula é até uma e meia. O outro não sai do Andarilho. Andarilho não, mãe! Peregrino. Verdade, Duda. Odeio esse cara. Qualquer dia quebro a TV. E o grão de bico das meninas tá pronto? “Esse cardápio vegetariano! Eu que num entro nisso. Gosto de carne, peixe, frango. Mesmo que morra um pouquinho antes. Sei lá. Tanta gente morrendo, e não é por falta de comida”.
Tá vazando o cano da pia do banheiro. O móvel ficou acabado. Bote um pano e um balde em baixo, depois do almoço eu vejo. Sabiatevatedoidiaelalozi? Não entendi Karoca, fala mais devagar. Elalozi. Doidia. Pestalozzi? É. Dois dias? Vatedoidiaelalozi. Vai ter dois dias? Ala. De aula? É é é. Entendi. Legal. Mas tá na pandemia. Nenhuma escola pode voltar. Fique tranquila. Um dia volta. Morricovidié? Isso. Tem que ficar em casa. Cinumorri. Num vamos pegar não, Karoca. Vamos ter fé.
Mãe, quando vai ser o oftalmo? Meus óculos não tão bons. Faz um ano que pedi pra marcar. Não consigo mais ver o computador. Ligue pra marcar, Duda! Marque pra mim também, minha vista também tá um caos. Envelheceu dez anos em um. Mas tem gente que nem envelheceu pra usar óculos.
Mãe, tem que passar no cursinho pra pegar o livro novo. Só segunda, Natinha. Veja se vai tá aberto. Vamos ver a agenda, Duda. Hoje tenho que terminar o projeto de extensão e elaborar duas provas on-line.
Zap. Amiga, tu podes fazer uma requisição de exame de Covid? Posso. Manda o nome. Foram quando os sintomas? Faz tempo. É pra saber se tá com imunidade. “Ô invenção, meu pai”!  Família. Pode beber cerveja? Vacinei faz sete dias. Acho que pode, tia. Mas deixa confirmar com Naldo. Pode. Diga que é folclore, igual cloroquina. Ótimo. Teteu continua na TV.
Zap. Grupo do hospital. Cancelou o ambulatório. Mas o paciente cardíaco que tava internado pegou covid e foi para a outra ala. Tem que ver o resultado do eco.  Grupo da UF. Saiu rápida a suspensão das aulas. Mexeu no bolso já era. Colégio. Suspensas as aulas das crianças. E Dora? Suspende também. Teteu continua em Peregrino. E o povo continua morrendo.
Zap. Grupo da oficina. Eita! Tem é conto pra ler! Ô povo pra escrever bem! Que é que eu tô fazendo junto desse povo chique, meu pai? Ainda bem que o mestre é paciente, e disse pra gente não ser tímido. A live da Fome no Insta de Salomé foi show. Uma aula de cultura e poesia. Haja arte pra nos acalentar a alma, enquanto o povo morre.
Não escrevi nada do livro. Tanta coisa pra fazer em casa. Faz três dias que Délida e Arthan estão no bosque. Fazer o quê? Não tive tempo. Tia Ceiça provavelmente diria: é o destino, André! Há coisas que acontecem pelas forças do universo. Mas, Arthan não é como André. Não tem uma Tia Ceiça. Não tem quase ninguém. São histórias diferentes. Será que sobreviveriam à quarentena? Deixa cada um no seu livro.  Tenho que escrever, tirar eles do bosque. Voltar para o palacete. E se o Rei desconfiar? Tortura? Morte? E ontem morreram oitenta e seis por hora no país.
Eita! Hoje é dia de oficina. Um oásis remoto na quarentena. Não li nada dAs Meninas, nem preparei as vozes entrecruzadas. Também, nessa correria. Não sei se é pandemia, ou se é pandemônio. Não gosto dessa palavra, tenho fé que vai passar. Voltaremos ao normal, nada de novo normal. Teteu continua vendo o Peregrino. Passamos dos quatrocentos e trinta mil mortos.
E o diálogo com vozes entrecruzadas? Não fiz. Ô, negócio complexo. Não tô conseguindo fazer. Muita coisa pra administrar em casa, estou sem tempo, os filhos falando, não dá pra se concentrar. Como não usar travessão? Nem aspas? Que invenção! Um monte de gente falando misturado. E entra pelo pensamento de um, o sentimento do outro. Até parece pandemia. Só sei escrever cada voz no seu canto, uma por vez. Não estou acostumada com esse estilo. Nunca vi essas coisas! Difícil escrever sem saber como é na vida real.
Gostava quando a vida era presencial, olho no olho, não virtual. Às vezes me pergunto se estamos na Caverna de Platão. Mas que tem gente morrendo tem. Muita gente do lado real. Enquanto estou vinte e quatro horas em casa tentando dar conta da internet, com Teteu, Natinha, Duda, Dora e Karoca, apenas nas mesmas horas de ontem mais de duas mil pessoas deixaram a Matrix no país da ordem e do progresso. Alguns insistem em negar, fazer de conta que tudo é invenção. Faz de conta. Havia isso nos livros infantis. Era uma vez...
Amira Rose Medeiros
Enviado por Amira Rose Medeiros em 17/05/2022
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