Amira Rose Medeiros
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Disque COVID

Disque Covid, doutora Amanda, bom dia. Em que posso ajudar?

Será que posso ajudar? Ninguém tem respostas para essa pandemia. Tudo novidade. Como é o contágio? É uma virose. Quando faz o teste rápido? E o swab? Mas é só atendimento telefônico. As pessoas ligam para tirar as dúvidas. Tenho tantas dúvidas. Quem vai tirar as minhas. Infectologistas foram deslocados para a enfermaria covid, as outras alas viraram UTI. Precisamos que os médicos do ambulatório ajudem nas escalas Disque Covid e na triagem. Tudo bem, quero ajudar. É o mínimo que posso fazer. E os pacientes das enfermarias foram para onde? Receberam alta ou foram transferidos para hospitais que não são referência.

Disque Covid, doutora Amanda, bom dia. Em que posso ajudar?

Doutora, queria só tirar uma dúvida. Esse vírus pode entrar pela respiração e também pelas mãos, é? Por que precisa passar álcool? As mãos podem se contaminar e levar o vírus até as mucosas, como nariz, boca, olhos. [Chamada perdida]. Ah, entendi. Pensei que eles entravam pela pele. Não, senhor. Mas as mãos contaminadas podem espalhar em vários locais. Continue usando álcool em gel nas mãos e nas superfícies onde muitas pessoas tocam.

Disque Covid, doutora Amanda, bom dia. Em que posso ajudar? Não é do Detran? Não senhor. Mas esse número da bem grande no site do Detran. Esse número é do atendimento de orientação sobre Covid. Ah. Desculpe.

Doutora, eu fiz o teste do nariz na quinta, queria saber se o resultado tá pronto. Certo, senhor! Mas não temos essa informação aqui. O laboratório entrará em contato quando o resultado estiver disponível. Mas já faz cinco dias, disseram que ia sair com quatro dias. [Chamada perdida]. Esse exame não é feito aqui, os exames da quinta foram encaminhados no sábado para São Paulo, então deve sair amanhã ou na quarta. E meu trabalho? Continue mantendo o isolamento de quatorze dias. [Chamada perdida].

Doutora, minha mãe é idosa e tá com a garganta doendo desde ontem. Eu tô com medo que seja covid, o que eu faço doutora? Fique calma. Ela teve febre, tosse, falta de ar? [Chamada perdida]. Não doutora, ela tá bem, só a dor na garganta mesmo. Então mantenha o isolamento domiciliar, e observe se vai ter algum outro sintoma. Qualquer mudança no quadro volte a ligar ou leve para uma avaliação na UPA. Não precisa fazer o teste? [Chamada perdida]. Ainda não, o swab é a partir do terceiro ou quarto dia de sintomas. [Chamada perdida]. Por enquanto hidratação, sucos ricos em vitamina C e cuidados gerais, usar máscara, lavar bastante as mãos e usar álcool em gel. Ainda consegui cloroquina na farmácia, doutora. Já dei pra ela também. Comprei pra todo mundo aqui. São quantos dias? [Chamada perdida]. Não existe confirmação do benefício da cloroquina, senhora. O uso é apenas hospitalar off label por indicação médica, é preciso monitorizar o eletrocardiograma.

Alô, não é do Detran? Não senhora. É do atendimento à Covid.

— Doutora Amanda, quer ir lanchar? Pode dar uma pausa no atendimento por quinze minutos.

— Vou ao banheiro e lanchar rapidinho. As ligações não param. Muitas chamadas perdidas.

Ambulatório fechado, não é prioridade agora. Doenças crônicas compensaram. Diabetes, hipertensão, insuficiência cardíaca, hanseníase, aids, tudo rapidamente controlado. Há outra prioridade. Salas vazias, silêncio. Deserto na alma repleta de dúvidas, entremeada de inseguranças. Onde está a rotina que a uns entediava e a outros era a razão da própria vida? Por quanto tempo ficaremos assim? O caminho até o banheiro é desolado, isolado, escuro, portas fechadas a chave. As chamadas perdidas continuam. Apenas um aparelho celular. E não sei se o que sei é suficiente.

Uma população de leigos cheia de perguntas. Uma comunidade de profissionais sem as respostas. Já eram trinta dias desde o primeiro caso. O primeiro óbito levou menos de quinze dias para ocorrer por aqui. Ele era tão novo. Mas tinha diabetes. Está justificado. Mas não eram apenas os idosos que iam morrer? Quantos casos teremos? Será necessário hospital de campanha?

Enfermarias lotadas, profissionais que correm de um lado para o outro. Dobram plantões, escalas triplicadas. Estão pagando bem pelos plantões nas alas Covid. Não quero, tenho medo. Meus pais são idosos e moram comigo. Sou hipertensa, não vou pra lá, não. Na TV as comissões responsáveis falam que os serviços estão preparados: temos respirador, temos oxigênio, temos profissionais, máscaras N95, estão chegando mais testes rápidos que o governo comprou com recursos do Estado. Qualquer dúvida, liguem para o Disque Covid. Sou eu.

Hospital de referência. Uma vantagem: recebe apenas casos regulados para internação. Não atende com porta aberta. A triagem é nas UPAs. Quatro UPAS na Capital, duas para suspeita de Covid, duas para as demais doenças. E os hospitais privados? Notícias que estão recebendo muita gente. Cirurgias eletivas canceladas. Precisam de leitos. Precisam de profissionais. Processo seletivo para cadastro de reserva na rede pública e na rede privada. Não precisa ser da cooperativa, não agora, não diante da Covid.

Vejo as cenas na Itália. Um arrepio corre pelas veias. Nosso caos não será como lá. O processo vai ser mais lento, porém não menos doloroso. País grande, a interiorização pode demorar. A espera assusta. Talvez haja tempo das cidades se prepararem, montar estrutura, discutir estratégias, criar protocolos. Não há mais álcool nos supermercados, máscaras, quando se encontram, aumentaram em mil por cento. Costureiras começaram a produzir máscaras de pano. Mas servem? Será que protegem? Vídeos chegam das equipes médicas da Espanha. Acreditar em relato de experiência. Onde estão as evidências, os estudos randomizados? Falam que o pico será em maio, talvez em junho. Não nos livraremos antes do fim do ano.

Tempo de intervalo esgotado.

Disque Covid, doutora Amanda, bom dia. Em que posso ajudar?

Doutora, meu vizinho tá com febre, tosse, dor na garganta, mas não quer ir ao médico. Tá contaminando todo mundo aqui. [Chamada perdida]. Tem que mandar alguém pra ver ele. Infelizmente não dispomos neste hospital de atendimento domiciliar, a família pode comunicar à USF e deve providenciar levá-lo para uma avaliação clínica na UPA mais próxima. Ele disse que não vai, e a família também não quer insistir. [Chamada perdida]. Não tem como obrigar?

Alô é do Detran? Não senhor. Este número grande que aparece no site do Governo é do atendimento à Covid. Procure na aba do Detran.

Disque Covid, doutora Amanda, bom dia. Em que posso ajudar?

Doutora, estou com febre e tosse seca já faz cinco dias. Hoje começou um pouco de falta de ar. Não consigo andar normalmente pela casa. Meu fôlego tá curto, eu puxo o ar, mas ele não vem. Se for covid, eu vou morrer? Eu tenho três filhos, Doutora. Fique calma. [Chamada perdida]. Como é seu nome? Carmem. Ok, Carmem. A primeira coisa é ficar calma. Você precisa ir até a UPA para uma avaliação médica, verificar a saturação, fazer exames de sangue e o swab nasal. Você pode se dirigir à UPA Oceania ou Cruz das Armas, ok? Use máscara e higienize suas mãos com álcool frequentemente. [Chamada perdida]. Mantenha distância de seus familiares e peça para todos usarem máscaras também. Tá certo, Doutora. Eu vou lá. Obrigada. Vai dar tudo certo, Carmem.

Fim de plantão. Muitas dúvidas esclarecidas a uns, palavras de tranquilidade a outros. O triplo de chamadas perdidas. Orientações feitas. Encaminhamentos realizados. Estou realizada? Fiz um pouco do que pude hoje. Amanhã é na triagem. Vestir todas aquelas roupas. Scrub. Capote. Máscara. Touca. Protetor facial. Luvas. Calor no ar condicionado. Esperar os doentes.

Tem pedido de avaliação para cardiologia na Ala Covid. Paciente hipertenso, cardiopata, está mantendo saturação com oxigênio por cateter nasal. Paramentação. Hora de entrar no covidário. Não sei o que meus olhos expressam, se o peso das minhas rugas frontais está visível nesse momento. O que conseguem perceber em mim. Preciso conversar e examinar. Ele está consciente, há esperança. Ainda tem um cordão de ouro pendurado no pescoço. Sente falta de ar? Um pouco. Vou auscultar seus pulmões. Crepitantes em ambos pulmões. Eletro e eco sem grandes anormalidades. O coração está forte. Vamos caprichar na fisioterapia para ficar bom. Está certo, Doutora. Desparamentação. A tomo está horrível, mais de noventa por cento. Meu Deus, nunca vi assim. Mantenham as medicações do coração enquanto a pressão arterial permitir. Dois dias depois estava morto. Foi feito o que era possível. Foi? Foi Deus que quis assim. Foi?

(...)

Um ano depois. Estou voltando para casa, uma dádiva voltar para casa. Em onze meses, trinta e um médicos não voltaram para casa em meu Estado. Eram bolsomínions? Eram petistas? Eram do centrão? Eram médicos, parte de uma equipe muito maior, enfermeiros, fisioterapeutas, maqueiros, auxiliares de limpeza, motoristas de ambulância, dentre tantos.

Há mais de ano sem compartilhar um momento de verdade com minha mainha. Ela ficou feliz com a serenata surpresa na janela do apartamento em seus setenta anos. Precisava tanto de um colo. Saudade dos finais de semana, de nos reunirmos na sala de TV para assistir um bom filme, comer pipoca com ela ao nosso lado. Mas ela está viva e vacinada. Em breve sentaremos juntas no mesmo sofá.

Perdas de um lado, fé do outro. Um dia de cada vez. Algumas certezas aparecem sobre esta peste que assola o mundo. Embora ela teime em mudar, em criar novas cepas, novas ondas. Nós também nos reinventamos. Também temos nossas variantes mutantes, adaptantes. O caminho é longo, mas ainda existem humanos humanos.

Disque Covid, doutora Amanda, bom dia. Em que posso ajudar?

 

Amira Rose Medeiros
Enviado por Amira Rose Medeiros em 13/11/2021
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